Em Maranello, de Ferrari

Até hoje, em todas as vezes que eu tive uma Ferrari ao alcance do meu braço ou havia uma fita de isolamento que nos separava ou um cartaz onde se lia “não toque”. Dessa vez, porém, seria diferente. Com as chaves na mão, eu olhava, meio abobalhado, admito, a Ferrari que, com a porta do motorista aberta, me esperava para dar uma voltinha por Maranello – comigo ao volante.

Mas esse encontro quase não aconteceu. Se é verdade que a primeira impressão é a que fica, esse momento há tantos anos esperado, e que eu achava que jamais aconteceria, tinha tudo para não acontecer mesmo. Vamos aos fatos.

Saímos de Florença em um domingo de manhã e pegamos a A1/E35 para percorrer 143 quilômetros até Maranello, cidadezinha próxima a Modena com 32 quilômetros quadrados e 15.875 habitantes, que só existe por causa de uma fábrica de automóveis – a Scuderia Ferrari, S.p.A (de società per azioni, ou sociedade anônima). Na verdade, chamar a Ferrari de “fábrica de automóveis” é um sacrilégio, uma banalização estúpida. A Ferrari é uma lenda, um mito, um sonho, uma referência – pense em carros de altíssimo desempenho, ou corridas de carros, e a marca vem imediatamente à cabeça.

Ainda na estrada já se vê o cavalo preto, empinado, pintado sobre um fundo amarelo, e é impossível ficar indiferente. Por outro lado, não há, na verdade, muito mais além disso para se ver ou fazer na cidade, só a loja oficial, bares, restaurantes e lojas de quinquilharias, todas dedicadas ao mesmo tema: a Ferrari. Além, é claro, do museu, o Museo Ferrari.

Fomos direto para o museu, um prédio não muito grande e muito bonito. Na frente dele, um amplo estacionamento, e qualquer carro que faça menção a entrar nele é imediatamente cercado por pessoas desesperadas, oferecendo passeios de Ferrari. Há outros carros também, como uma Lamborghini Murcielago verde abacate, mas ninguém dá a mínima para eles. Quem está lá quer ver Ferrari, punto, basta. A abordagem é agressiva, e consiste em se pendurar no carro tentando adivinhar de onde o visitante é, cumprimentando e oferecendo passeios em todos os idiomas que conseguirem. Quando descobrem que o visitante é brasileiro, então, vira uma algazarra só.

Fui obrigado a parar porque um homem apareceu na frente do carro, e nisso um homem e uma mulher, ele brasileiro e ela italiana, concorrentes entre si, começaram a falar sem parar e, em seguida, a discutir entre eles. Eu detesto esse tipo de abordagem e, já meio irritado, dispensei todo mundo dizendo que não queria fazer passeio nenhum. Segui para estacionar o carro, pensando em entrar no museu. Foi quando fui abordado por dois irmãos, também brasileiros. Impaciente, fui logo dizendo para a menina que não queria nada e que primeiro ia para o museu, depois decidiria.

A menina, com toda a paciência, me esperou terminar de falar e só disse uma frase: “tudo bem, moço, mas essa hora é ideal para sair, porque mais tarde o trânsito vai ficar pesado e o senhor não vai conseguir aproveitar o passeio”. Não sei por que, mas isso me desarmou. Resolvi dar atenção a ela, e, quando vi, estava na loja deles, preenchendo o termo de responsabilidade e dando o número da minha permissão internacional para dirigir.

Os brasileiros são disputados a tapa pelos “Ferrareiros” (em alusão aos “bugueiros” do Ceará) – e, no meu caso, isso foi quase literal – porque nós somos loucos para andar de Ferrari, e pagamos o que for, sem discutir preço nem nada. E geralmente são os brasileiros que mais gastam com essa brincadeira. Por isso, segundo me contaram, quem não fala português em Maranello está aprendendo. Era verdade: para onde se olhava se percebia o típico turista brasileiro, deslumbrado, soberbo, achando que entende tudo sobre tudo. Ali, então, era uma festa: todos entendidos do assunto, falavam de Ferraris como se tivessem tido e dirigido várias durante a vida. Um porre.

Os passeios de Ferrari são cotados de acordo com o modelo do carro e o tempo de duração. Paguei o mais barato, 80 euros por 10 minutos, não só por causa do preço, mas porque o modelo também era o único que tinha “banco traseiro” – quer dizer, um espaço atrás onde a Fê poderia ir. Era uma Ferrari Califórnia, um cupê conversível 2 + 2 (um conversível com teto rígido retrátil com quatro lugares, dois à frente e dois atrás) lançado em 2008 para ser o carro de entrada, ou seja, o modelo mais básico da marca. Tem motor V8 (oito cilindros dispostos em V) de 4,3 litros de cilindrada, 460 cv a 7.750 rpm e 49,5 mkgf de torque a 5.000 rpm. E o melhor de tudo: vermelha.

Sua linda

Entrei em uma Ferrari pela primeira vez na minha vida e fechei a porta. O banco em concha, de couro cor de caramelo, acolhe o corpo com firmeza e conforto. Olhei para a frente e vi o enorme conta giros analógico, que se destaca no meio do painel, entre duas telas de cristal líquido onde são projetados instrumentos como velocímetro, indicador de marcha, pressão de óleo, de água, temperatura do motor e o computador de bordo. Ao meu lado estava o guia/instrutor, que me guiaria pelo caminho; atrás dele ia a Fê, e ao lado dela, a câmera que filmaria a voltinha (custa 20 euros, mas eu consegui como cortesia). De forma totalmente casual, em um português cheio de sotaque, o guia me fez a pergunta de um milhão de euros:

– E aí, o que vai ser? Quer pegar leve ou andar forte?

Meu Deus, o que fazer? Eu só tinha dez minutos! Decidi ser diplomático e disse que queria me divertir e aproveitar o passeio, acelerando quando pudesse. “Bom”, ele disse, “então vamos lá. Ligue o carro”.

Para ligar o carro é estranho: vira-se a chave e, em seguida, pressiona-se o botão vermelho escrito “Start/Stop” que fica na parte esquerda inferior do volante de três raios, cheio de botões para ajustes de regulagem de motor e suspensão. Na hora ouve-se o barulho rouco do V8, bem diferente dos V12, que têm um uivo alto. A vibração do motor é discreta, em ponto morto ele é manso como o motor do meu carro, mas eu tremia como vara verde.

A Califórnia tem câmbio sequencial de 7 marchas, e o aspirante a piloto pode escolher entre o modo automático ou fazer as trocas utilizando as borboletas que ficam atrás do volante. Escolhi mezzo a mezzo: automático na ida, borboletas na volta. Mas mesmo no modo automático, para tirar o carro da inércia é necessário engatar a primeira marcha por meio da borboleta da direita, deixando o câmbio fazer o trabalho sozinho a partir daí.

Saímos e passamos diante do museu, onde os mesmos chatos que haviam nos abordado antes tentavam capturar outros turistas – me deu vontade de dar tchauzinho para eles. Seguimos rodando devagar nas ruas estreitas da cidade, e pude perceber que a Califórnia é um carro feito para rodar na cidade, ir ai shopping, passear pela orla curtindo com a capota abaixada. É dócil e desliza macio, sua direção elétrica direta e precisa é perfeita. Passamos na porta da fábrica e seguimos em direção à estrada, onde, em uma reta longa, o guia me deu a ordem: “vai, pisa”.

Cravei o pé no acelerador e o carro se transformou. O câmbio reduziu duas marchas, o conta giros marcou quase seis mil rpm, o motor começou a rugir bem alto e o ponteiro do velocímetro subia incrivelmente rápido. O corpo pressiona o banco e as marchas começam a subir com rapidez impressionante. Não sei que velocidade alcancei, mas da última vez em que olhei, pouco antes de a reta acabar, estávamos a 170 quilômetros por hora, mas não parecia nada. Frear para pegar a saída da estrada e fazer o retorno não foi tarefa fácil, em parte porque eu queria continuar acelerando, em parte porque os freios a disco ventilado de cerâmica são praticamente uma âncora e é preciso dosar a força do pé direito.

Fizemos o retorno e troquei o modo de troca de marchas para as borboletas. Pegamos novamente a reta e pude acelerar de novo, mas não tanto quanto na ida, porque dessa vez havia tráfego na estrada. mas foi divertido porque deu para fazer ultrapassagens e manusear os controles do câmbio, aproveitando bem o torque do carro, que não é brincadeira.

Voltamos para a loja e desliguei o carro. O passeio tinha terminado, e só aí caiu a ficha: eu tinha passado dez minutos da minha vida e pouco mais de dez quilômetros dirigindo uma Ferrari, uma das coisas que eu sempre sonhei fazer na minha vida! Além disso, era uma conversível vermelha, em um lindo domingo de sol e calor, em Maranello! Pena que a Fê estava no banco de trás, não no do carona. Mesmo assim, não havia como ficar mais perfeito.

Na verdade, havia sim. Quando voltamos eu fiquei um tempo do lado de fora da loja, namorando aquela coisa linda, enquanto a Fê foi lá pra dentro pegar nossas coisas. Quando entrei, escutei o guia falando para ela que eu sou um excelente motorista, com uma condução muito tranquila e segura, de quem sabe o que está fazendo, e que o passeio havia sido ótimo, e que ele fazia aquele trajeto várias vezes por dia e já tinha visto muita tranqueira por aí.

Aquilo foi a cereja do meu sundae. Tá certo que o cara é um vendedor, e por isso o elogio podia ter sido totalmente vazio, porque afinal, eu estava pagando, mas, por outro lado, ele não tinha nenhum motivo para elogiar se não tivesse sido bom, não é? E, de mais a mais, havia sido mesmo um ótimo passeio e eu não tinha feito nenhuma barbeiragem, como realmente não costumo fazer. Talvez tenha sido pela emoção do momento, mas aquele elogio me fez ganhar o dia.

De volta à Terra, era hora de atravessar a rua e conhecer o Museo Ferrari.

JG em êxtase

Levamos João Guilherme a uma festinha de aniversário cujo tema era o Homem Aranha, heroi que está no topo da lista de preferências afetivas dele (à exceção da mãe, claro) seguido por Batman, Buzz Lightyear, Relâmpago McQueen, Tow Mater (o reboque de “Carros”), Vasco, Woody (o cowboy de “Toy Story”) e, depois disso tudo, lá no final, eu.

Como era uma festinha temática, o que é muito comum, JG foi devidamente paramentado com sua fantasia de Homem Aranha, com direito a tênis, meia e até cueca, se achando o próprio personagem. Chegando lá, ele começou a brincar nos brinquedos da casa de festas e estava se divertindo, tranquilo. Tudo absolutamente dentro da normalidade, até que…

Em dado momento, a iluminação do salão foi reduzida. As crianças se agitaram e João Guilherme ficou meio assustado, enquanto um dos animadores anunciava a chegada da “principal atração da noite”: o Homem Aranha, em pessoa. Ele apareceu usando uma fantasia até bem acabada, fazendo malabarismos, poses, simulando o lançamento de teias, subindo em brinquedos enquanto ia em direção ao aniversariante.

João Guilherme não conseguia acreditar no que via. O Homem Aranha em pessoa! De verdade! Ele mesmo, ali, bem na sua frente! Por mais que eu tente, jamais vou conseguir descrever a expressão de surpresa, realização, encanto e fascínio dele enquanto acompanhava a performance do personagem. Ele, que estava sentado no meu colo, olhava para mim, para a Fê e para o Homem Aranha sem acreditar no que estava acontecendo, até que gritou “o Homem Aranha!”, desceu e saiu correndo em direção ao ídolo da vida dele.

A partir daí o pobre do heroi não teve mais paz. Para onde ele ia, JG estava lá, ao lado dele, cutucando, puxando a roupa, tentando chamar a atenção dele de alguma forma. “Olha pra mim, Homem Aranha!”, ele repetia sem parar, e tudo o que o coitado fazia JG tentava imitar. Nada mais existia ou importava no mundo, só aquele cara com aquela roupa azul e vermelha, provavelmente quente para burro.

O Aprendiz

João Guilherme estava tão extasiado, tão entretido e compenetrado na adoração ao Homem Aranha que parecia que o aniversário era dele. Teve gente na festa que achou que ele fazia parte do show. Um mascote ou assistente, talvez. Eu até fui falar com o Aranha, meio que para me desculpar, achando que JG poderia estar meio chato, mas ele me disse que estava se divertindo também, e que nunca tinha visto uma criança tão entusiasmada.

Aprendendo as manhas

No final da festa, a consagração: o Homem Aranha colocou João Guilherme nos ombros e ficou correndo pelo salão. Não dá pra ter ideia do tamanho do sorrido do garoto. Deve ter sido o dia mais feliz da vida dele, sem exagero.

Conta isso em Portugal!

Um belo dia você manda um documento para a gerência responsável pelo controle de frequência dos empregados da empresa em que você trabalha, informando que concedeu folga de quatro dias para um integrante da sua equipe que atuou como mesário nas últimas eleições municipais. Você escreve assim: “fulano gozará da folga prevista na Lei n.º 9.504/97 entre os dias 08 e 11 de outubro, por ter participado de treinamento para exercer as funções de mesária nas eleições municipais de 2012, nos dias tais e tais”.

Passado o tempo, o funcionário que recebeu as folgas comenta com você que, dos quatro dias concedidos, somente dois foram efetivamente abonados. Você, intrigado, liga para aquela gerência e pergunta o porquê. A resposta do responsável:

– Não está claro quais são os dias de folga. Está escrito “entre 8 e 11 de outubro”, pra mim isso quer dizer NOS dias 8 e 11 de outubro. A mensagem tinha de ser mais bem escrita. Mas você pode me mandar um e-mail esclarecendo isso que eu providencio.

Incrédulo, e levemente insultado por uma anta dessas ter criticado sua redação, você procura o chefe do cerumano que lhe deu essa resposta tão cretina, esclarece a situação e pergunta se esse procedimento é realmente necessário – não estaria claro quais seriam os dias de folga? Mas a resposta, para seu desalento, na verdade desespero, é a seguinte:

– Olha, para mim, ela até se enganou sim, mas por outro motivo. Na minha interpretação, quando se diz “entre os dias 8 e 11 de outubro” só se conta os dias 9 e 10, que ficam entre 8 e 11. Os dias 8 e 11 deviam estar excluídos da conta e, por isso, nem deviam ter sido abonados.

“Só pode ser pegadinha”, pensei. Não era. Desliguei o telefone e mandei a mensagem explicando que “entre 8 e 11 de outubro” queria dizer “nos dias 8, 9, 10 e 11 de outubro”. E tô besta até agora com tanta estupidez.

Pragas da Zona Sul: turistas na ciclovia

É fácil reconhecer um turista – brasileiro, bem entendido, os estrangeiros são outra história – no calçadão de Copacabana: geralmente anda em bando, está sempre muito arrumado e, se for mulher, bastante maquiada. Calças jeans, tênis de marca, mocassins e saltos são comuns, mas também são frequentes camisetas com estampas do Cristo Redentor, do próprio calçadão, ou de qualquer frase alusiva ao Rio de Janeiro. Tiram fotos nos lugares mais inusitados, especialmente à noite, achando que o flash da máquina vai ser capaz de iluminar a água à distância ou o Forte ao longe. Também há aqueles que tiram fotos do nada, quer dizer, não dá pra identificar para onde a lente está apontando, os que acham que atores globais brotam do chão e que todo carioca é “assim” com pelo menos um deles.

Esse comportamento deslumbrado e errático é até compreensível, afinal muita gente que está ali nunca viu o mar na sua vida inteira – complicado imaginar isso, já que quem mora no Rio, mesmo que não frequente a praia assiduamente, a tem como parte da rotina e da paisagem -, é a principal característica do turista na orla da Zona Sul.

Tudo é novidade para eles, e tudo chama a atenção: os camelôs, os quiosques, as palmeiras, a areia, os desenhos das pedras portuguesas no chão, o Copacabana Palace, as estátuas do Drummond e do Dorival Caymmi e, claro, a ciclovia.

É aí que o bicho pega. Diferentemente dos idosos, retratados na semana passada, que assumem a ciclovia como se fossem donos dela e os incomodados que se mudem, os turistas em geral simplesmente não têm noção do que ela é. Não entendem o motivo de haver uma pista de asfalto entre a calçada e a rua e, consequentemente, não compreendem seu funcionamento. Nâo sabem se devem andar nela ou na calçada, não percebem que devem atravessá-la como se atravessa uma rua. E ainda retrucam quando alguém reclama deles – uma vez um homem gritou para um ciclista que “lugar de bicicleta é na rua”, depois de não ter sido atropelado por muito pouco ao entrar na ciclovia sem ver.

Alguns turistas param na ciclovia para tirar fotos, especialmente diante do Copacabana Palace, o ponto mais crítico de todo a sua extensão, sem perceber que há bicicletas trafegando e pessoas correndo por ali, e que assim podem acabar se machucando. Nesse trecho, aliás, os mais cara de pau chegam a tentar parar a circulação da ciclovia para que ninguém atrapalhe a foto, e isso raramente acaba bem.

Há, ainda, quem perceba que a ciclovia é um ligar para andar de bicicleta ou correr, e resolvem alugar uma bicicleta no Bike Rio para arriscar um pedal. Outro perigo: geralmente as pessoas não têm intimidade com a magrela e, por falta de habilidade, pedalam em zigue zague, com enorme dificuldade para se locomover, e acabam caindo, sozinhas ou derrubando alguém junto. Isso normalmente acontece nos sinais de trânsito, onde há grande aglomeração de pessoas entrando e saindo do calçadão, e como resultado gritos e sustos são uma constante.

É complicado coordenar tudo isso, o morador da Zona Sul entender que isso faz parte da rotina de um lugar onde os hotéis estão sempre cheios, a ponto de, reconhecidamente, não haver mais baixa temporada. Por outro lado, cabe a todos os que utilizam a ciclovia – ciclistas, corredores, jovens e idosos, locais ou turistas, lembrar que ninguém está sozinho ali, e que manter a cidadania e a urbanidade são um dever constante de cada um.

Florença ao ar livre

Apesar de ser a maior cidade da Toscana, Florença é pequena. Tem 102 quilômetros quadrados de área e pouco mais de 371 mil habitantes – menor que Niterói, por exemplo, que tem 129,3 quilômetros quadrados de área e mais de 487 mil habitantes. Suas dimensões reduzidas, aliadas a sua geografia plana, à organização urbana, à eficiência do transporte público e às complicações para se utilizar o carro, em razão da dificuldade em encontrar estacionamento, incentivam o público a se locomover a pé. Na verdade, Florença convida o viajante a caminhar, tantas são as atrações que oferece, todas, salvo algumas exceções, bem próximas umas das outras. Caminhar é mesmo o melhor meio para se locomover por Florença, e dá para fazer um roteiro bem interessante para se conhecer a cidade andando, o além de ser possível apreciar pequenas surpresas.

A principal atração de Florença a céu aberto é, definitivamente, a Ponte Vecchio, que atravessa o Rio Arno e, segundo pude apurar, integra o mítico Corredor Vasari, feito por ordem de Cosme I de Médici para unir os Palácios Pitti e Vecchio. Não se sabe ao certo a idade da ponte, mas relatos indicam que ela foi originalmente construída em madeira e destruída por cheias do Rio Arno em 1333. Foi reconstruída em 1345, dessa vez em alvenaria, e é totalmente coberta. Interessante da ponte é que ela parece um grande shopping popular, pois abriga joalherias e ourivesarias em toda a sua extensão (mas os preços cobrados pelos lojistas não são nada populares!). Mais ou menos no meio da ponte há uma estátua de Benevenutto Cellini, artista do Renascimento, em cujas grades casais prendem cadeados como símbolo de amor eterno. Na ponte também é comum haver apresentações de artistas anônimos tentando ganhar um trocado, e além disso, ela ainda oferece, em sua parte central, que não é ocupada pelas lojas, uma linda vista do Rio Arno.

A Ponte Vecchio

Ponte Vecchio

Bem ao lado da Ponte Vecchio está outra atração bastante interessante, mas do lado de fora: a Galleria Degli Uffisi. Nosso guia declarou: “eu gostaria de dizer que se deve desistir de visitá-la se você não tiver comprado o ingresso com antecedência, pela internet“. Bem, como não tínhamos comprado, foi exatamente isso o que fizemos: não a visitamos, sem arrependimentos. Mesmo porque o que mais me interessava eram as estátuas dos mais célebres pensadores renascentistas que nasceram ou viveram em Florença e ornamentam a fachada do prédio: Michelângelo, Américo Vespúcio, Maquiavel, Dante, Galileu e Donatello são só os mais proeminentes, mas há mais, muitos mais para se admirar. A perfeição das estátuas, inclusive, é tanta que dá a impressão que eles estão ali, olhando para os passantes.

Galileu Galilei

Américo Vespúcio

Nicolau Maquiavel

Ao lado da Galleria Degli Uffizi fica a Piazza della Signoria, onde fica o Palazzo Della Signoria, ou Palazzo Vecchio, do qual já falamos. A maior praça de Florença é perfeita para almoçar e acompanhar o movimento. Recomendo o Rivoire, onde provei um risoto de legumes espetacular, para se comer de joelhos. Na praça estão a réplica do David, outra de Netuno, e um pequeno teatro, com estátuas de pessoas marcantes da vida de Florença e da Itália, protegido do sol e muito procurado para aquele descanso entre uma visita e outra.

Há, porém, lugares em Florença em que o meio mais recomendável para se visitar é o carro. Nem tanto pela distância, mas pelo relevo: o primeiro é a a cidadezinha de Fiesole, que fica a 10 quilômetros de Florença. Na verdade, aqui a graça do passeio nem é tanto Fiesole, que, justiça seja feita, é uma cidadezinha encantadora. Legal mesmo é percorrer a SS67, ou Via San Domenico, o caminho que une as duas cidades, ida e volta. É uma pequena serra, de inclinação suave e constante, que, à medida em que se sobe, mostra uma vista linda da periferia de Florença.

A Via San Domenico tem restaurantes muito interessantes para quem quer comer bem e apreciar a vista. Recomendo o Le Lance, nas proximidades de Fiesole, onde se come uma bisteca fiorentina deliciosa a um preço bem razoável. Jantamos lá, tendo Florença iluminada ao fundo.

Finalmente, a Piazzale Michelangeolo é o lugar de onde se pode ver o mais bonito pôr do sol de Florença. Centenas de pessoas, estejam elas sozinhas ou em casais, grupos, famílias, se acotovelam em uma escadaria ou nas mesas do mirante do restaurante, ambos estrategicamente posicionados de forma a ficarem voltados diretamente para o poente, com a Ponte Vecchio em primeiro plano, formando uma paisagem inesquecível. Assim como no Arpoador ou no Pontal do Atalaia, em Arraial do Cabo, todos acompanham o crepúsculo com reverência, aplaudindo entusiasmados aquele espetáculo da natureza. Foi dali que vimos o sol se pôr pela última vez nessa viagem a Florença, em um anoitecer mágico.

Pôr do sol visto da Piazzale Michelangeolo, com a Ponte Vecchio ao fundo

Esse foi o “gran finale” de nossos dias em Florença, uma cidade, assim como Roma, para onde certamente voltarei. Mas a Itália ainda tinha algumas surpresas para nós.

Pragas da Zona Sul: idosos na ciclovia

A orla que se estende da Pedra do Leme até a subida da Avenida Niemeyer, no Leblon, tem oito quilômetros de extensão e calçadões com pelo menos cinco metros de largura, em seus pontos mais estreitos. Não falta espaço para quem quer caminhar descompromissadamente, aproveitando a paisagem do mar. Mesmo assim, os personagens do post de hoje preferem sempre utilizar a faixa de asfalto de um metro e meio de largura destinada ao tráfego de bicicletas e de corredores, que fica rente à rua: a ciclovia.

Antes de continuar, porém, vou esclarecer: há uma diferença entre ciclovias, ciclofaixas e faixas compartilhadas. As primeiras são vias destinadas ao tráfego de bicicletas e, ocasionalmente, corredores, destacadas do passeio (a calçada) e do logradouro (a rua) públicos. As segundas são faixas destacadas na rua, destinadas ao trânsito de bicicletas – elas só são separadas do logradouro pela sinalização vertical (placas e sinais) e horizontal (faixas pintadas no pavimento). Já as terceiras tanto podem ser um alargamento do logradouro para coportar automóveis e bicicletas quanto podem ser espaços feitos para ser dividos por ciclistas, corredores e pedestres, como o que existe na Lagoa Rodrigo de Freitas, ou no Parque do Flamengo, no Rio. Maiores informações aqui.

Portanto, a ciclovia da orla da Zona Sul não foi feita para pedestres, mas para bicicletas e corredores. Há, ao longo do trajeto, placas que deixam isso bem claro ao determinar que os ciclistas pedalem devagar, os corredores mantenham-se à direita e os pedestres utilizem o calçadão. Mas a convvência na ciclovia é difícil. É raro percorrê-la sem sustos, ou sem se impressionar com muitos maus exemplos. Todos são vilões e vítimas da própria falta de cidadania. Os idosos, tema deste post, são só uma parte dessa história; os demais serão tratados nos próximos posts desta série.

Os idosos atravessam, caminham, entram e saem da ciclovia como se estivessem na areia, ou na própria calçada, alguns por falta de atenção, outros porque não estão nem aí. Seus movimentos são imprevisíveis, e volta e meia acidentes acontecem, sejam atropelamentos, sejam quedas de ciclistas que tentam evitar atropelar alguém. Eu mesmo já caí e me machuquei assim: eu estava pedalando em Copacabana, sentido Leme, quando, de repente, uma senhora se virou e invadiu a ciclovia, carregando um baldinho com água. Virei para não atropelá-la, e consegui – só atingi o balde. Mas, nisso, com a guinada, a bicicleta deu um pinote, eu decolei, rolei pelo pavimento da ciclovia e a bicicleta caiu por cima de mim. Sofri uma entorse no pulso, ralei as costas e destruí meus óculos, mas pelo menos aquela não se machucou. Por outro lado, ela não teve sequer a decência de perguntar se eu estava bem

Coisas assim são comuns, e acontecem mais frequentemente com idosos porque, talvez, eles não tenham absorvido a rotina da ciclovia, sei lá. O fato é que com os mais jovens isso não é tão comum, eles pelo menos param e olham para os dois lados antes de entrar na ciclovia. Mas há aqueles que desafiam o tráfego e arrumam encrenca gratuitamente, inclusive com corredores. Outro dia, enquanto corria, presenciei um quase atropelamento perto do Leme. O cliclista reclamou com razão, porque a senhora o viu se aproximar e resolveu atravessar a pista exatamente quando ele estava passando, mas ela respondeu com ofensas cabeludíssimas, e alguns palavrões que eu nem conhecia.

Há, ainda, aqueles que caminham em grupo pela ciclovia, geralmente em formação de leque, ocupando toda a largura da pista. Quando isso acontece é certo que eles não vão ceder passagem para ninguém, ciclistas, corredores ou outros pedestres. É irritante, inexplicável e a senha para a confusão.

O que me incomoda nos idosos, e com as “minorias”, de um modo geral – se bem que as “minorias” são cada vez menos “minoritárias” – é eles acharem que, por merecerem tutela especial do Estado (como o Estatuto do Idoso, nesse caso específico), estão acima da lei, do bem e do mal, e podem fazer o que quiserem. Está errado: se há leis específicas que os protegem, é porque eles merecem ser protegidos, ou seja, o Estado deve dar condições a que eles continuem a fazer parte da sociedade normalmente, sem que sua cidadania seja afetada por sua condição. Por outro lado, eles, como qualquer outro, continuam submetidos à lei e à ordem pública. Resumindo, não são melhores nem piores que ninguém, são tão cidadãos quanto quaisquer outros. Que os respeitem também, pois.

Ognissanti, Capela Brancacci, Bargello, Museu Galileu

Na visita à igreja de Ognissanti, ou “Todos os Santos”, tivemos o maior lance de azar da viagem. Fomos lá no sábado de manhã, nosso último dia em Florença, com o firme propósito de ver, além da igreja em si, o afresco da Santa Ceia pintado por Ghirlandaio, que, segundo nosso guia, é bem parecida com a pintura feita por Leonardo da Vinci em Milão. Entramos na igreja (entrada franca) e, ao mesmo tempo em que apreciávamos suas obras de arte, que são realmente muito bonitas, com destaque especial para uma cruz que, iluminada pelo sol, reluz tanto que parece ser elétrica, eu procurava a pintura da ceia. Eu andava tanto de um lado para outro procurando a cena que um monge, que terminara suas orações perto do altar principal, me notou e veio oferecer ajuda. Falei sobre a pintura da ceia, e ele explicou que ela fica no refeitório da igreja, cuja entrada fica do lado de fora, em uma porta autônoma. Ele disse, também, que o horário de visitas já tinha se encerrado. Não acreditei. Saí da igreja, olhei para a direita e vi a porta fechada, com o cartaz indicando os horários: segunda, terça e sábado, das 9 horas ao meio dia. E era meio dia e meia… Pior ainda foi perceber que tínhamos passado por aquela porta antes de entrar na igreja, porque achávamos que a pintura ficava dentro dela. Enfim, vai ficar para a próxima visita.

Ognissanti

Ognissanti

A linda cruz de Ognissanti

Na falta da Santa Ceia, a maior atração da igreja, para mim, está no teto. É um afresco com uma perspectiva tão perfeita que eu precisei fixar o olhar para me convencer que não era um mezanino de verdade, mas sim uma pintura. Um trabalho verdadeiramente fabuloso.

O teto de Ognissanti

Quando estávamos indo embora, nos deparamos, na Piazza d’Ognissanti, entre o rio Arno e a porta da igreja, com várias Ferraris, de três modelos, especificamente: F430 Scuderia, 599 GTB e 458 Italia. Elas tinham placas da Inglaterra, da Escócia e do País de Gales, e participavam da “Volta d’Italia”, que começava ali e duraria uma semana. Uma semana dirigindo pela Itália, partindo de Florença, a bordo de Ferraris! Tem gente que sabe viver mesmo. Estas, aliás, foram as únicas Ferraris que vimos fora de Maranello – é grave, a crise.

As Ferraris perfiladas para a “Volta d’Italia” na Piazza Ognissanti

Do outro lado do rio, um pouco mais distante, escondida em um largo, fica a igreja de Santa Maria del Carmine, que abriga a Capela Brancacci, encomendada em torno de 1422 por Felipe de Michele Brancacci ao pintor Masolino para ser a capela de sua família, e, para tanto, deveria ser adornada por uma pintura que contasse histórias de São Pedro. Masolini chamou o jovem Mascaccio para ser seu assistente, mas os afrescos permaneceram inacabados, devido à partida de Masolini para a Hungria em 1425, até 1481, quando um terceiro mestre, Filippino Lippi, completou o que restava. Das 12 imagens, Lippi completou a décima e fez as duas últimas. Estes afrescos se notabilizaram por serem considerados as primeiras obras do renascimento, se distanciando do estilo medieval, em que as imagens são normalmente estáticas e em duas dimensões, sem perspectiva.

A igreja de Santa Maria del Carmine, onde fica a Capela Brancacci

A Capela Brancacci

Detalhe da Capela Brancacci

O ingresso para a Capela, que é bem pequena, apesar de ser linda, custa 6 euros, e ela está aberta durante a semana das 10 às 17 horas, exceto terça feira, das 13 às 17 horas. Aos domingos e nos feriados religiosos, das 13 às 17 horas. Fica fechada no ano novo, 7 de janeiro, domingo de Páscoa, 1.º de maio, 16 de julho, 15 de agosto e no Natal.

No prédio anexo à nave principal da igreja que abriga a Capela Branacci há, ainda, um salão que contém um afresco da última ceia, pintado por Alessandro Allori, 1582. Parece que retratar a famosa cena era meio que uma obsessão, naqueles tempos. Como foi a única pintura da Ceia que vi na viagem, tirei uma foto.

A Santa Ceia na igreja de Santa Maria del Carmine

O Museu Bargello fica Palazzo del Popolo, no centro histórico de Florença, e é o edifício mais antigo da cidade ainda de pé e em uso. funciona todos os dias, das 8h15 às 16h50, e recebeu este nome por ser a residência do bargelo de Florença, uma pessoa que cumulava várias funções de polícia, de magistratura e a prefeitura da cidade. Depois de abrigar o bargello, o palácio funcionou como prisão, caserna e, finalmente, museu. Seu acervo é grande e variado, mas nada muito espetacular, especialmente considerando-se o preço de sete euros por ingresso – como outros museus florentinos, o ingresso tem validade de quinze minutos para ser utilizado. Bonito, mas não achei imperdível.

O que é imperdível mesmo é o Museu Galileu. Na verdade, ao contrário do que o nome sugere, não é um museu dedicado a Galileu, mas sim um museu dedicado a vários ramos da ciência: astronomia, mecânica, guerra, medicina, navegações, química, instrumentos de precisão, fenômenos naturais, aplicações domésticas da ciência. Há uma galeria dedicada inteiramente a Galileu no segundo andar, na qual está exposto um acervo que nem é muito grande, mas é interessantíssimo: livros, inclusive o original de Dialogo sopra i due massimi sisteme del mondo, o “Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo”, o livro onde Galileu discorre sobre os dogmas científicos da igreja católica, fazendo contraponto com as novas teorias que surgiram com o renascimento, como o heliocentrismo (o sol como centro “do universo”), a forma esférica da Terra, gravitação, dentre outros assuntos relacionados à astronomia e à física. Como forma de evitar perseguições da Inquisição, o livro foi escrito em tom de paródia, como um diálogo entre dois personagens, mas não adiantou: Galileu foi recolhido, julgado e condenado a prisão domiciliar perpétua, e isso porque era amigo do Papa! Somente em 1983 (isso mesmo, há menos de trinta anos) Galileu foi absolvido pelo Papa João Paulo II.

O “Dialogo sobre os dois maiores sistemas do mundo”. Florença, 1632.

Mas as peças mais impressionantes do acervo de Galileu são os dois dedos e um dente do cientista. Você leu direito: a exposição exibe, com solenidade, o polegar e o dedo médio da mão direita e um dente de Galileu! Isso, inclusive, gerou uma história interessante: eu estava olhando para os vidros que contêm os restos de Galileu, impressionado, sem saber se sentia nojo ou admiração, quando um senhor inglês me abordou.

O polegar direito e um dente de Galileu

– Escuta, meu jovem, isso é mesmo um dedo do Galileu?

– É sim, senhor. Na verdade, são dois, o polegar e o dedo médio da mão direita. E ali tem um dente.

– O dedo médio? Quer dizer, aquele do gesto? (e levantou o dedo médio em riste)

(Rindo) – É sim, esse mesmo.

– Legal… é como se ele estivesse eternamente dizendo “toma essa, Papa”!

Ri mais, e ele se despediu e continuou a visita.

O dedo médio de Galileu, eternamente em riste

O museu é sensacional. Sensacional! Mas é caro: cada ingresso custa 9 euros, com prazo de validade até o fim do dia, e está aberto de sexta a quarta feiras, das 9h30 às 18 horas, e às quintas das 9h30 às 13 horas. Fica fechado dias 1.º e 6 de janeiro, domingo de Páscoa, 1.º de maio, 24 de junho, 15 de agosto, 1.º de novembro, 8, 25 e 26 de dezembro.